Portugal 7 Coreia do Norte 0 - Das Tormentas à Boa Esperança e o Adamastor ficou cheio de Ketchup
Vinte e quatro horas atrás, se alguém me dissesse que, no encontro entre Portugal e a Coreia do Norte, a Selecção Nacional ia enfiar sete bolas na baliza adversária, sem resposta, eu diria:
- Meu, isso é delírio!
Mesmo agora, mais ou menos vinte e duas horas depois, ainda não consigo acreditar que ganhámos por uma margem tão grande. Nem nos meus sonhos mais irrealistas imaginava que íamos vencer por 7-0. Sete-zero!
Vou, então, recuar vinte e quatro horas. Como ia ter exame às duas da tarde, impossibilitando-me de ver o jogo todo, tinha vindo de manhã para a Faculdade. Como queria ver pelo menos a primeira parte, fui almoçar cedo. Tinha ouvido dizer que na Sala de Alunos da Faculdade de Medicina costumavam projectar os jogos, mas não queria almoçar lá. Naquela a que nós, os alunos, chamamos Cantina Velha, as refeições são mais baratas. Além disso, tinha esperança de que passassem lá o jogo também. Cheguei lá cedo, ainda antes de começarem a servir as refeições. Optei por comer lasanha de soja da Macrobiótica, mas vim comer cá para fora, que o dia estava bonito. Ao mesmo tempo, ia ouvindo a Antena1 através do meu leitor de MP3. Fiquei a conhecer a constituição do onze incial e que aquele estádio, na Cidade do Cabo, tinha até agora merecido a metáfora de "Cabo das Tormentas", visto que até agora ninguém tinha ganho lá, incluindo anteriores campeãs mundiais, como a Itála, a Inglaterra e o Paraguai. Seriam os portugueses, novamente, os primeiros a dobrar o Cabo das Tormentas, a transformá-lo em Cabo da Boa Esperança? Eu esperava que sim.
Outra coisa que ouvi era que o Verão começaria rigorosamente ao meio-dia e vinte e oito minutos, pouco antes de a Selecção entrar em campo. Desejei que fosse também a essa hora que acabasse de vez esta fase um pouco nublada da Equipa de Todos Nós.
Entretanto, o Nani tinha já enviado uma mensagem de apoio aos companheiros de Selecção:
Meus queridos guerreiros nacionais
Há 522 anos, o português Bartolomeu Dias conseguiu, pela primeira vez, ultrapassar o Cabo das Tormentas, demonstrando que era possível ultrapassar o extremo sul de África por mar, apesar das muitas tempestades e perigos. O nome foi mudado para Cabo da Boa Esperança e é esta esperança que hoje, quase sete séculos depois, vocês vão continuar a alimentar. Na mesma cidade, apesar de todas as dificuldades e perigos, contra ventos e marés, vocês conseguirão manter bem vivo o sonho português, conseguirão dobrar todas as tormentas.
E eu estarei aqui, tão longe e tão perto, a torcer, a vibrar e a festejar com vocês. Hoje, todo o Mundo perceberá quem são os guerreiros nacionais.
Com votos das maiores felicidades
Um forte abraço deste vosso companheiro e amigo
Nani
Foi querido. No Destak, na parte das cartas dos leitores, havia este poema:
Força Portugal
Continuamos confiantes
Na nossa Selecção
Porque não são apenas
Uma equipa com emoção
São também uma Nação
Que a próxima disputa
Tenha emoção e luta
Tenhamos confiança
E até ao último minuto
Na Selecção Nacional
Com fervor e sem igual
Força Portugal
Alexandrina Silva
Nem Nani nem a autora deste poema calculava quão verdadeiras se tornariam as suas palavras em poucas horas. Ninguém calculava.
Um pouco antes do início do jogo, uns alunos pediram que se ligasse a televisão junto ao balcão dos bitoques, para ver o jogo. Eu ainda não tinha acabado de comer, mas fui logo marcar lugar junto à televisão. Era uma das antigas, sem grande qualidade, com muitos reflexos no ecrã que dificultavam a visualização, pré-histórica quando comparada com o tão publicitado HD, mas tinha uma grande vantagem: a sincronização com o relato da rádio era quase perfeita. No dia do jogo com a Costa do Marfim tentei ouvir o rádio enquanto via a emissão na RTP HD mas a descrepância era de quase dez segundos - e acontece muita coisa em dez segundos. Se até os comentários da televisão estavam desfasados com as imagens... O entusiasmo dos locutores da rádio (pelo que apanhei, eram Alexandre Afonso e Nuno Matos) era contagiante e aumentou os meus níveis de excitação.
Os portugueses entraram bem no jogo, de resto, se bem que os norte-coreanos fossem dando luta e pregando uns sustos ocasionais. Ontem, houve muito mais garra, muito mais determinação, muito menos medo, isso ficou evidente quase logo desde início.
Até que, perto da meia-hora de jogo:
- GOLO! - gritei eu em coro com todos os que assistiam, libertando a ansiedade e o nervosismo que, apesar de tudo, me acompanhavam desde o início. Levantámo-nos todos, com os punhos cerrados em sinal de triunfo, e uns miúdos de um campo de férias que estavam lá a almoçar correram para junto de nós mal ouviram os gritos. Um deles até me perguntou:
- Quem marcou?
- Foi o Raúl Meireles.
Na altura, agradeci mentalmente aos jogadores (e tenho quase a certeza de que eles ouviram) e esperei que aquele que era o nosso primeiro golo no Mundial fosse o primeiro de muitos neste campeonato. Não calculava é que muitos desses golos seriam marcados já neste jogo.
Finda a primeira parte, resolvi ir-me embora. Entraria em exame daí a pouco mais de meia hora, se começasse a ver a segunda parte certamente não conseguiria sair a meio. Regressei então à minha Faculdade, sem, contudo, deixar de ouvir a rádio. Mesmo quando me juntei a colegas para revisões de última hora - revisões que, por sinal, ajudaram-me - continuei a ouvir a emissão em volume baixo, embora tivesse a atenção voltada para outra coisa.
Quando o Simão marcou o segundo golo, eu não percebi logo. O locutor só gritava:
- Já lá mora! Já lá mora!
E eu só pensava: "Eh pá, não podias gritar GOLO! primeiro? Assim uma pessoa baralha-se". Depois, foi eu quem comunicou às minhas colegas:
- Olhem, o Simão marcou.
Fiquei satisfeita. 2-0 certamente já consolidaria a vitória, podia fazer o exame descansada, aquilo estava no papo. Contudo, ainda digeria o golo do Simão, já o Hugo Almeida marcava o terceiro. Quando o anunciei, a Sara, que estava um bocado nervosa com o exame, comentou:
- Ao menos que corra bem a alguém.
E logo a seguir, mais um golo. Desta feita, como já aumentara o número de alunos naquela zona, à espera de entrar para exame, já houve quem gritasse golo. Foi aí que percebi: o ketchup estava a jorrar. A minha irmã, que não sabia se eu estava a ver o jogo, ia-me enviando mensagens anunciando os golos. Neste quarto golo, escreveu o seguinte: Nós hoje não paramos, o tiago traz outro! Eu entretanto já tinha enviado uma dizendo: E vão 4! Não sei se foi nesse golo se noutro, acho que foi em vários, mas achei imensa graça a algo que o locutor da rádio disse, enquanto festejava o golo:
- É meu, é teu, é nosso, é de Portugal!
Pouco depois, entrámos para o auditório, onde íamos fazer o exame. Eu ia já com um sorriso no rosto. Distribuídos os exames por todos, numa altura em que os primeiros a receber o exame já escrevinhavam, um dos professores de vigia, de telemóvel e respectivo auricular na mão, disse:
- OK, Portugal está a 4-0, a gente avisa se marcarem.
Ouviram-se risos. Pouco depois, contudo, já ele anunciava o quinto golo, mas não disse quem tinha marcado. Concentrámo-nos no exame. A onda positiva estendeu-se ao teste, que era mais fácil do que eu estava à espera e me correu bastante bem. Uns minutos depois, penso que nessa altura já o jogo tinha acabado, uma professora de outra cadeira entrou e, com os dedos, fez sete-zero.
- E o Ronaldo marcou - acrescentou ela.
Quando o exame acabou não fui para casa uma vez que ainda tinha uma consulta no dentista daí a duas horas. Voltei a sintonizar a Antena1 no meu leitor de MP3, de modo a ir acompanhando o rescaldo do jogo e as avaliações do desempenho. Segundo um dos comentadores (o Joaquim Rita?), a Selecção libertou-se finalmente do "atadismo", jogou com garra, com coragem, com alegria. Como dizia hoje no Record, a Selecção assumiu "atitude ambiciosa para parecer digna do lugar que ocupa no ranking da FIFA". Agora estamos "com um pé e meio" (não me lembro de quem disse isto) nos oitavos-de-final, até podemos qualificarmo-nos se perdermos com o Brasil. No Trio D'Ataque de ontem, o apresentador Carlos Daniel disse mesmo que tínhamos saído dali com "mais equipa", já que se todos os jogadores demonstraram ter valor em campo.
O Tiago é capaz de ter sido o jogador que mais surpreendeu pela positiva. A noção que eu tinha dele nunca foi de um jogador brilhante. Acima da média, mas não era nada do outro mundo. Lembro-me até de ouvir, há uns anos, já nem me lembro por quem, que se o Tiago, se fosse mais rápido, podia ser o melhor do Mundo. Eterno suplente de Deco na Selecção, nunca se conseguiu impôr. Ontem, nem o reconhecia. No Record resumiram bem o jogo dele: "exibição esmagadora (...) como que querendo recuperar num só jogo todo o tempo perdido nestes anos para se afirmar como uma mais-valia indiscutível da Selecção Nacional". Ficou provado que, sem tirar qualquer mérito a Deco que, apesar de já ter visto melhores dias, já fez muito pela Selecção, os habituais comentários de que "o Deco é insubstituível", que "a Selecção não é a mesma sem Deco" não eram totalmente verdade. É sempre bom saber que temos alternativas. Por outro lado, o seu caso é semelhante aos casos de Nani e Hugo Almeida, que não sendo titulares permanentes, aproveitam todas as oportunidades para mostrar o seu valor, para dizerem ao Mister que eles também são opção.
Por falar no Nani, tenho pena de ele não ter participado nesta festa. Tenho a certeza de que ele também teria marcado um golo ou dois e celebrado com o seu mortal.
O Cristiano Ronaldo lá quebrou o seu jejum, com um golo bizarro, mas para mim, mais marcante do que isso, foi ele ter oferecido o prémio de Homem do Jogo a Tiago. Foi um gesto bonito. Vê-se que ele está mais maduro, que começa a desempenhar o papel que Figo desempenhou, como líder da Selecção. Isso, para mim, tem mais valor do que os golos que ele marca.
Talvez seja ainda euforia pós-goleada, mas tenho esperanças de que seja um ponto de viragem, que seja como o Portugal-Rússia do Euro 2004, em que começámos mal e chegámos à final. Eu sei que a Coreia do Norte é uma equipa fraca, que pode haver quem ache que Portugal "não fez mais do que a sua obrigação", mas ninguém pode negar que soube tão bem... Nem me lembro de um resultado tão dilatado em Europeus ou Mundiais. Só me lembro do 7-1 à Rússia, na qualificação para o Mundial. Pode não valer mais do que três pontos, mas servirá para aumentar a confiança e talvez para estimular ainda mais o apoio por parte dos adeptos. Eu, pelo menos, já vi mais bandeiras nas janelas da minha avenida...
O nosso próximo jogo é na Sexta-feira, frente ao Brasil. Deve ser provavelmente um dos jogos mais aguardados da fase de grupos. Eu tenho pena de o Kaká não jogar - apesar de nos facilitar a vida, é mau para o espectáculo. Se é para termos um Portugal-Brasil no Mundial, o ideal seria se fosse um jogo daqueles de igual para igual, renhido, cheio de bom futebol, cada equipa com o seu "melhor do Mundo". Não dá, paciência. Em todo o caso, todos os que ouvi estão de acordo e eu também: convém entrarmos a matar, com o espírito, a garra e a paixão com que entrámos hoje, esforçarmo-nos por fazer um bom resultado. Mesmo que já não seja certo que o primeiro lugar ajuda a fugir da Espanha. Para reforçar aquilo que começámos a demonstrar ontem: que estamos aqui para fazer estragos, para ir o mais longe possível. Como diz o Nani, para mostrar ao mundo quem são os guerreiros portugueses!
- Meu, isso é delírio!
Mesmo agora, mais ou menos vinte e duas horas depois, ainda não consigo acreditar que ganhámos por uma margem tão grande. Nem nos meus sonhos mais irrealistas imaginava que íamos vencer por 7-0. Sete-zero!
Vou, então, recuar vinte e quatro horas. Como ia ter exame às duas da tarde, impossibilitando-me de ver o jogo todo, tinha vindo de manhã para a Faculdade. Como queria ver pelo menos a primeira parte, fui almoçar cedo. Tinha ouvido dizer que na Sala de Alunos da Faculdade de Medicina costumavam projectar os jogos, mas não queria almoçar lá. Naquela a que nós, os alunos, chamamos Cantina Velha, as refeições são mais baratas. Além disso, tinha esperança de que passassem lá o jogo também. Cheguei lá cedo, ainda antes de começarem a servir as refeições. Optei por comer lasanha de soja da Macrobiótica, mas vim comer cá para fora, que o dia estava bonito. Ao mesmo tempo, ia ouvindo a Antena1 através do meu leitor de MP3. Fiquei a conhecer a constituição do onze incial e que aquele estádio, na Cidade do Cabo, tinha até agora merecido a metáfora de "Cabo das Tormentas", visto que até agora ninguém tinha ganho lá, incluindo anteriores campeãs mundiais, como a Itála, a Inglaterra e o Paraguai. Seriam os portugueses, novamente, os primeiros a dobrar o Cabo das Tormentas, a transformá-lo em Cabo da Boa Esperança? Eu esperava que sim.
Outra coisa que ouvi era que o Verão começaria rigorosamente ao meio-dia e vinte e oito minutos, pouco antes de a Selecção entrar em campo. Desejei que fosse também a essa hora que acabasse de vez esta fase um pouco nublada da Equipa de Todos Nós.
Entretanto, o Nani tinha já enviado uma mensagem de apoio aos companheiros de Selecção:
Meus queridos guerreiros nacionais
Há 522 anos, o português Bartolomeu Dias conseguiu, pela primeira vez, ultrapassar o Cabo das Tormentas, demonstrando que era possível ultrapassar o extremo sul de África por mar, apesar das muitas tempestades e perigos. O nome foi mudado para Cabo da Boa Esperança e é esta esperança que hoje, quase sete séculos depois, vocês vão continuar a alimentar. Na mesma cidade, apesar de todas as dificuldades e perigos, contra ventos e marés, vocês conseguirão manter bem vivo o sonho português, conseguirão dobrar todas as tormentas.
E eu estarei aqui, tão longe e tão perto, a torcer, a vibrar e a festejar com vocês. Hoje, todo o Mundo perceberá quem são os guerreiros nacionais.
Com votos das maiores felicidades
Um forte abraço deste vosso companheiro e amigo
Nani
Foi querido. No Destak, na parte das cartas dos leitores, havia este poema:
Força Portugal
Continuamos confiantes
Na nossa Selecção
Porque não são apenas
Uma equipa com emoção
São também uma Nação
Que a próxima disputa
Tenha emoção e luta
Tenhamos confiança
E até ao último minuto
Na Selecção Nacional
Com fervor e sem igual
Força Portugal
Alexandrina Silva
Nem Nani nem a autora deste poema calculava quão verdadeiras se tornariam as suas palavras em poucas horas. Ninguém calculava.
Um pouco antes do início do jogo, uns alunos pediram que se ligasse a televisão junto ao balcão dos bitoques, para ver o jogo. Eu ainda não tinha acabado de comer, mas fui logo marcar lugar junto à televisão. Era uma das antigas, sem grande qualidade, com muitos reflexos no ecrã que dificultavam a visualização, pré-histórica quando comparada com o tão publicitado HD, mas tinha uma grande vantagem: a sincronização com o relato da rádio era quase perfeita. No dia do jogo com a Costa do Marfim tentei ouvir o rádio enquanto via a emissão na RTP HD mas a descrepância era de quase dez segundos - e acontece muita coisa em dez segundos. Se até os comentários da televisão estavam desfasados com as imagens... O entusiasmo dos locutores da rádio (pelo que apanhei, eram Alexandre Afonso e Nuno Matos) era contagiante e aumentou os meus níveis de excitação.
Os portugueses entraram bem no jogo, de resto, se bem que os norte-coreanos fossem dando luta e pregando uns sustos ocasionais. Ontem, houve muito mais garra, muito mais determinação, muito menos medo, isso ficou evidente quase logo desde início.
Até que, perto da meia-hora de jogo:
- GOLO! - gritei eu em coro com todos os que assistiam, libertando a ansiedade e o nervosismo que, apesar de tudo, me acompanhavam desde o início. Levantámo-nos todos, com os punhos cerrados em sinal de triunfo, e uns miúdos de um campo de férias que estavam lá a almoçar correram para junto de nós mal ouviram os gritos. Um deles até me perguntou:
- Quem marcou?
- Foi o Raúl Meireles.
Na altura, agradeci mentalmente aos jogadores (e tenho quase a certeza de que eles ouviram) e esperei que aquele que era o nosso primeiro golo no Mundial fosse o primeiro de muitos neste campeonato. Não calculava é que muitos desses golos seriam marcados já neste jogo.
Finda a primeira parte, resolvi ir-me embora. Entraria em exame daí a pouco mais de meia hora, se começasse a ver a segunda parte certamente não conseguiria sair a meio. Regressei então à minha Faculdade, sem, contudo, deixar de ouvir a rádio. Mesmo quando me juntei a colegas para revisões de última hora - revisões que, por sinal, ajudaram-me - continuei a ouvir a emissão em volume baixo, embora tivesse a atenção voltada para outra coisa.
Quando o Simão marcou o segundo golo, eu não percebi logo. O locutor só gritava:
- Já lá mora! Já lá mora!
E eu só pensava: "Eh pá, não podias gritar GOLO! primeiro? Assim uma pessoa baralha-se". Depois, foi eu quem comunicou às minhas colegas:
- Olhem, o Simão marcou.
Fiquei satisfeita. 2-0 certamente já consolidaria a vitória, podia fazer o exame descansada, aquilo estava no papo. Contudo, ainda digeria o golo do Simão, já o Hugo Almeida marcava o terceiro. Quando o anunciei, a Sara, que estava um bocado nervosa com o exame, comentou:
- Ao menos que corra bem a alguém.
E logo a seguir, mais um golo. Desta feita, como já aumentara o número de alunos naquela zona, à espera de entrar para exame, já houve quem gritasse golo. Foi aí que percebi: o ketchup estava a jorrar. A minha irmã, que não sabia se eu estava a ver o jogo, ia-me enviando mensagens anunciando os golos. Neste quarto golo, escreveu o seguinte: Nós hoje não paramos, o tiago traz outro! Eu entretanto já tinha enviado uma dizendo: E vão 4! Não sei se foi nesse golo se noutro, acho que foi em vários, mas achei imensa graça a algo que o locutor da rádio disse, enquanto festejava o golo:
- É meu, é teu, é nosso, é de Portugal!
Pouco depois, entrámos para o auditório, onde íamos fazer o exame. Eu ia já com um sorriso no rosto. Distribuídos os exames por todos, numa altura em que os primeiros a receber o exame já escrevinhavam, um dos professores de vigia, de telemóvel e respectivo auricular na mão, disse:
- OK, Portugal está a 4-0, a gente avisa se marcarem.
Ouviram-se risos. Pouco depois, contudo, já ele anunciava o quinto golo, mas não disse quem tinha marcado. Concentrámo-nos no exame. A onda positiva estendeu-se ao teste, que era mais fácil do que eu estava à espera e me correu bastante bem. Uns minutos depois, penso que nessa altura já o jogo tinha acabado, uma professora de outra cadeira entrou e, com os dedos, fez sete-zero.
- E o Ronaldo marcou - acrescentou ela.
Quando o exame acabou não fui para casa uma vez que ainda tinha uma consulta no dentista daí a duas horas. Voltei a sintonizar a Antena1 no meu leitor de MP3, de modo a ir acompanhando o rescaldo do jogo e as avaliações do desempenho. Segundo um dos comentadores (o Joaquim Rita?), a Selecção libertou-se finalmente do "atadismo", jogou com garra, com coragem, com alegria. Como dizia hoje no Record, a Selecção assumiu "atitude ambiciosa para parecer digna do lugar que ocupa no ranking da FIFA". Agora estamos "com um pé e meio" (não me lembro de quem disse isto) nos oitavos-de-final, até podemos qualificarmo-nos se perdermos com o Brasil. No Trio D'Ataque de ontem, o apresentador Carlos Daniel disse mesmo que tínhamos saído dali com "mais equipa", já que se todos os jogadores demonstraram ter valor em campo.
O Tiago é capaz de ter sido o jogador que mais surpreendeu pela positiva. A noção que eu tinha dele nunca foi de um jogador brilhante. Acima da média, mas não era nada do outro mundo. Lembro-me até de ouvir, há uns anos, já nem me lembro por quem, que se o Tiago, se fosse mais rápido, podia ser o melhor do Mundo. Eterno suplente de Deco na Selecção, nunca se conseguiu impôr. Ontem, nem o reconhecia. No Record resumiram bem o jogo dele: "exibição esmagadora (...) como que querendo recuperar num só jogo todo o tempo perdido nestes anos para se afirmar como uma mais-valia indiscutível da Selecção Nacional". Ficou provado que, sem tirar qualquer mérito a Deco que, apesar de já ter visto melhores dias, já fez muito pela Selecção, os habituais comentários de que "o Deco é insubstituível", que "a Selecção não é a mesma sem Deco" não eram totalmente verdade. É sempre bom saber que temos alternativas. Por outro lado, o seu caso é semelhante aos casos de Nani e Hugo Almeida, que não sendo titulares permanentes, aproveitam todas as oportunidades para mostrar o seu valor, para dizerem ao Mister que eles também são opção.
Por falar no Nani, tenho pena de ele não ter participado nesta festa. Tenho a certeza de que ele também teria marcado um golo ou dois e celebrado com o seu mortal.
O Cristiano Ronaldo lá quebrou o seu jejum, com um golo bizarro, mas para mim, mais marcante do que isso, foi ele ter oferecido o prémio de Homem do Jogo a Tiago. Foi um gesto bonito. Vê-se que ele está mais maduro, que começa a desempenhar o papel que Figo desempenhou, como líder da Selecção. Isso, para mim, tem mais valor do que os golos que ele marca.
Talvez seja ainda euforia pós-goleada, mas tenho esperanças de que seja um ponto de viragem, que seja como o Portugal-Rússia do Euro 2004, em que começámos mal e chegámos à final. Eu sei que a Coreia do Norte é uma equipa fraca, que pode haver quem ache que Portugal "não fez mais do que a sua obrigação", mas ninguém pode negar que soube tão bem... Nem me lembro de um resultado tão dilatado em Europeus ou Mundiais. Só me lembro do 7-1 à Rússia, na qualificação para o Mundial. Pode não valer mais do que três pontos, mas servirá para aumentar a confiança e talvez para estimular ainda mais o apoio por parte dos adeptos. Eu, pelo menos, já vi mais bandeiras nas janelas da minha avenida...
O nosso próximo jogo é na Sexta-feira, frente ao Brasil. Deve ser provavelmente um dos jogos mais aguardados da fase de grupos. Eu tenho pena de o Kaká não jogar - apesar de nos facilitar a vida, é mau para o espectáculo. Se é para termos um Portugal-Brasil no Mundial, o ideal seria se fosse um jogo daqueles de igual para igual, renhido, cheio de bom futebol, cada equipa com o seu "melhor do Mundo". Não dá, paciência. Em todo o caso, todos os que ouvi estão de acordo e eu também: convém entrarmos a matar, com o espírito, a garra e a paixão com que entrámos hoje, esforçarmo-nos por fazer um bom resultado. Mesmo que já não seja certo que o primeiro lugar ajuda a fugir da Espanha. Para reforçar aquilo que começámos a demonstrar ontem: que estamos aqui para fazer estragos, para ir o mais longe possível. Como diz o Nani, para mostrar ao mundo quem são os guerreiros portugueses!