Estar enganada nunca soube tão bem
Na passada terça-feira, dia 6 de dezembro, a Seleção Portuguesa de Futebol venceu a sua congénere suíça por seis bolas contra uma, em jogo a contar para os oitavos-de-final do Mundial 2022. Com este resultado, Portugal segue para os quartos-de-final da prova, onde irá defrontar Marrocos.
A diversão e o sofrimento continuam, como eu desejava. Nesta fase é mais diversão, felizmente.
As emoções começaram várias horas antes do início da partida. Consegui ver um bocadinho do jogo entre a Espanha e Marrocos na minha hora de almoço. Já estava a trabalhar quando este terminou – e naturalmente fiquei chocada com o resultado final. Estava a fazer falta uma surpresa destas, os oitavos estavam a ser demasiado previsíveis.
Adiantando-me um pouco, o nosso resultado com a Suíça pode ser considerado uma surpresa? Eu diria que sim. Em teoria este era o jogo mais equilibrado desta fase, ninguém conseguia prever com certeza quem venceria. Ninguém estava à espera que qualquer um dos lados atropelasse o outro desta forma.
Regressando ao pré-jogo, ao longo da tarde circulou o rumor de que Cristiano Ronaldo ficaria no banco – algo que se confirmou quando saiu oficialmente o onze inicial. Muitos de nós sabiam que esta era a decisão correta. Mas ninguém tinha a certeza de que o técnico teria coragem de tomá-la.
Desta vez, custou-me menos estar a trabalhar durante parte do jogo. Ajudou o facto de termos tido menos movimento e atendimentos menos complicados. Uma vez mais, tínhamos o relato ligado, mas acabei por me servir mais de sites de atualizações, quando conseguia espreitá-los. Foi assim que soube do primeiro golo de Gonçalo Ramos e do golo de Pepe – este último já perto da minha hora de saída.
Ainda consegui ver imagens do primeiro golo no trabalho, quando a Sport TV as colocou nas redes sociais. Não sei do que gosto mais: se da jogada, se das celebrações. Foi uma grande assistência de João Félix, que consegue fazer a bola passar por entre dois suíços. Gonçalo Ramos remata de lado e a bola entra pelo canto, impossível de defender.
E depois a Seleção toda correndo a abraçar o miúdo – embora o Bernardo Silva tenha voltado depressa para o campo, coitado. Eu devia estar com um ar tão tolo lá no trabalho, de olhos no computador, sorrindo de orelha a orelha.
Só consegui ver imagens do golo de Pepe já em casa. Na sequência de um canto batido por Bruno Fernandes, o Marmanjo voou e cabeceou para as redes. Pepe é dos que mais ama a Seleção e teima em não envelhecer. Que nunca nos deixe!
Já estava em casa durante a segunda parte. Não sei como foi com vocês, mas eu estava cautelosa, com medo que a Seleção cometesse algum deslize e a Suíça reduzisse a vantagem. Não seria a primeira vez.
Felizmente, não foi necessário preocupar-me: a segunda parte trouxe uma mão-cheia de golos. A minha mãe até comentou que parecia que estávamos a jogar contra o Liechtenstein e não com a Suíça.
Foram logo dois golos em poucos minutos. Antes do terceiro golo, Diogo Dalot conseguiu deixar um suíço fora do caminho. Depois, Gonçalo Ramos, com uma lata descomunal, fez uma cueca ao guarda-redes, marcando o seu segundo golo na partida.
Cinco minutos depois, foi a vez de Raphael Guerreiro marcar. Quem acompanhe o meu blogue há uns anos saberá que o Raphael é o meu menino-bonito. Ele não recebe, nem de longe nem de perto, a devida apreciação da parte dos adeptos portugueses – é possível que isso seja por ele nunca ter jogado na liga portuguesa. Não estava à espera que ele marcasse neste jogo, mas fiquei contente por o ter feito.
Na verdade, foi uma grande jogada coletiva que desaguou neste golo. Começou com um bom entendimento entre o regressado Otávio e João Félix. Félix depois passou para Gonçalo Ramos, que depois assistiu para Raphael.
A única mancha no desempenho de Gonçalo Ramos – e mesmo da Seleção como um todo – foi a assistência involuntária para o golo de honra da Suíça, na sequência de um pontapé de canto. Acontece, nem sequer foi a primeira vez neste Mundial, ninguém se rala.
E de qualquer forma ele redimiu-se rapidamente com um terceiro golo. Bruno Fernandes recuperou uma bola, passou-a a Félix e este isola para Ramos marcar. Eu nesta altura já nem gritava “GOLO!”, só me ria.
Um par de parágrafos, então, para falarmos sobre Gonçalo Ramos? Este miúdo estreia-se a titular pela Seleção num Mundial e faz-me logo um hat-trick e uma assistência, coloca logo o mundo inteiro a falar sobre ele. E depois de cada golo põe-se ali a fazer pistolas com os dedos, como se fizesse aquilo todos os dias – adoro a lata.
Aliás, se não se importam, vou começar a fazer os mesmos gestos. Até os colegas de Seleção já os fizeram.
Finalmente, Cristiano Ronaldo entrou, mais ou menos a meio da segunda parte. Isto depois de o público ter passado um bom bocado a chamá-lo. Isso na altura irritou-me – toda a Turma das Quinas jogando como nunca, Gonçalo Ramos então a fazer o jogo da vida dele, e aquela gente gritava por um jogador no banco? Mas compreende-se: a maior parte dos adeptos a favor de Portugal tinham vindo para ver Ronaldo. Ele continua a ser a figura mais mediática da nossa Seleção. O facto de ele já não render o mesmo é uma coisa recente.
E a verdade é que Ronaldo esforçou-se. Não foi por falta de vontade. Tive pena de o golo dele ter sido anulado.
Ainda houve tempo para mais um golo, em cima dos noventa minutos – de Rafael Leão, o Marmanjo que remata com um sorriso. Este compete em beleza com o primeiro de Gonçalo Ramos: um remate em arco espetacular, os suíços nem se mexeram.
Ficou feito o resultado. Portugal segue para os oitavos-de-final.
O meu texto pré-Mundial envelheceu como um iogurte, não foi? A Seleção deixou-me com cara de parva. Eu própria o escrevi: vim para este Mundial com a minha fé e entusiasmo em mínimos históricos – não eram nulos, tinham alguma esperança, mas menos que o costume.
E o que acontece após o pontapé de saída? Sem nunca esquecer as circunstâncias deploráveis, o Campeonato do Mundo está a ser dos mais excitantes desde que me lembro. Melhor de tudo, Portugal está a fazer, no mínimo, o seu terceiro melhor Mundial de sempre – mesmo na pior das hipóteses, para mim já é um sucesso, mesmo que pequeno. O jogo com a Suíça, em particular, foi um dos nossos melhores em Mundiais, se não tiver sido o melhor. Eu não tinha razão ao ter sido tão cética antes e, meu Deus, não ter razão nunca soube tão bem. No rescaldo do jogo, terça-feira à noite, sentia as bochechas doridas de tanto sorrir.
Antes de continuar a falar das coisas boas, vamos ter de abordar o elefante na sala. Ou melhor, o elefante no banco da Seleção no início do jogo, sempre com inúmeras câmaras apontadas para ele.
Temos de dizê-lo, Gonçalo Ramos jogou no lugar de Ronaldo e fomos narrativamente recompensados por isso. Os títulos e manchetes sobre o jogo não douram a pílula: pela primeira vez desde o Euro 2004, Ronaldo não é titular indiscutível na Seleção. O “primeiro dia do resto da vida” dele e das Quinas.
Passámos uma boa parte dos últimos anos, desde a final de Paris, a debater se a Seleção joga melhor com ou sem Ronaldo. Antes, quando Ronaldo tinha a capacidade de ser Deus Ex Machina e, do nada, marcar um ou dois golos e resolver uma partida, ambos os lados da discussão tinham validade. Nestes últimos meses, agora que os anos já pesam e Ronaldo não fez pré-época (mesmo que tenha sido por motivos legítimos), e depois deste jogo, as dúvidas estão a diminuir.
Confesso que não sei se estou preparada para a próxima fase. Ainda é muito cedo, foi apenas um jogo em que Ronaldo não foi titular. No entanto, receio que, quando a realidade assentar, a longo prazo, irá doer.
Ainda assim, gasta-se demasiada tinta digital com o madeirense: porque fez olhos tristes para Fernando Santos a certa altura, porque saiu demasiado cedo para os balneários. E… pobre Otávio. Fez uma bela exibição perante a Suíça mas, como a Joana Marques assinalou, teve de levar com inúmeras perguntas sobre Ronaldo na sua conferência de imprensa. Como disse um colega meu no outro dia, Portugal podia ganhar o Mundial e, no dia seguinte, as televisões todas gastariam horas a debater se Ronaldo estava mais feliz no 10 de julho ou no 18 de dezembro. Todas as câmaras apontadas a Ronaldo acabam por criar um efeito de lupa: ampliando, exacerbando coisas que, na verdade, são pequenas.
Não sei como foi com vocês, mas eu ia dando em doida com a direção que o debate a certa altura tomou. De repente, só tínhamos pessoas fazendo de Ronaldo um vilão ou pessoas preferindo que Portugal perdesse com Ronaldo a titular. Quase ninguém no meio.
Mas isso também é um produto das redes sociais. Os algoritmos preferem os extremos.
A única coisa que sei é que Ronaldo está a lidar com esta fase da sua carreira da melhor maneira que consegue. Nem sempre tem tomado as melhores atitudes, mas ele é humano. E, mesmo já não sendo titular inquestionável, a Seleção precisa dele. Como suplente de ouro, por exemplo – aliás, Ronaldo poderá ser importante se tivermos de ir a algum desempate por grandes penalidades. Nem que seja apenas com atitudes como o “Anda bater!” ou o consolo a Diogo Costa, no fim do jogo com Gana – isso também é importante.
Aliás, paradoxalmente, todo este assédio da imprensa poderá funcionar a favor deles. Poderá espicaçar Ronaldo o suficiente para ele e os colegas de equipa se unirem ainda mais, contra tudo e contra todos. Não seria a primeira vez.
Até porque uma das minhas coisas favoritas em relação ao momento atual da Equipa de Todos Nós tem sido o companheirismo entre os Marmanjos. As celebrações dos golos, os abraços, as veias salientes, as mensagens nas redes sociais, as declarações. Otávio à espera que o Gonçalo Ramos deixe o Benfica, William à espera que Ramos lhes pague um jantar (terá pago?), os conselhos de Bruno Fernandes ao jogar às cartas, Bruno tentando roubar-lhe o prémio de Melhor Jogador, Otávio tentando roubar-lhe a bola do hat-trick. Nem todas as equipas que cultivam este ambiente são bem sucedidas, mas não se pode ter sucesso sem esse espírito.
Agora espera-nos Marrocos nos quartos-de-final. Sim, é um adversário mais desejável para nós do que a nossa eterna besta negra Espanha, mas não significa que vá ser fácil. Daquilo que vi do jogo dos oitavos, eles gostam muito de contra-ataques. Além disso, Marrocos ainda não perdeu um jogo neste Mundial e só sofreu um golo – um auto-golo perante o Canadá. Os marroquinos nem sequer sofreram um “golo” no desempate por grandes penalidades perante os espanhóis. E assim deixaram a Espanha e a Bélgica para trás, como Bernardo Silva recordou.
À semelhança do que já tinha feito depois do jogo com o Uruguai, Fernando Santos reforçou a importância de mantermos os pés na Terra – faz bem. Referiu as dificuldades que Marrocos nos colocou no Mundial 2018 – embora, na minha opinião, o problema tenha sido mais termos jogado mal.
Uma vez mais, não vai ser nada fácil, mas eu acho que estará ao nosso alcance se fizermos as coisas bem. Se houve algo que se descobriu na terça-feira é o que acontece quando fazemos as coisas bem. Já é bom termos chegado aos quartos-de-final, sim, mas não chega. Quero mais. Todos queremos.
Uma coisa boa é o facto de, se continuarmos no Catar, a partir de agora, em princípio, nenhum jogo de Portugal no Mundial coincidirá com o meu trabalho. Os quartos são hoje. As meias-finais, se passarmos, serão quarta-feira, dia em que estou de folga à tarde.
Eu pedi esta folga há umas três semanas, juro que não foi de propósito – no que toca a este Mundial, só fiz mesmo planos para a fase de grupos. Aliás, se Portugal passar às meias, já tenho algo combinado… mas só digo o que é se for mesmo para a frente, se Portugal ganhar a Marrocos.
Por fim, tanto a final com o jogo do terceiro lugar serão no próximo fim de semana, à tarde.
Tenho colegas que planearam isto com mais fé do que eu. Um deles pediu há um par de semanas para sair mais cedo na quarta-feira pois fizera as contas assumindo que Portugal passaria em primeiro no grupo. Outro colega meu já está a fazer planos para ir buscar a Seleção ao aeroporto no dia 19.
Fico com inveja pois não consigo pensar na final ou mesmo nas meias-finais sem começar a hiperventilar. Já não me reconheço a mim mesma. Eu é que tenho o blogue, eu é que devia ser a grande adepta da Seleção. Quando é que me tornei tão cética? Uma das minhas colegas há um par de semanas até me disse que eu tinha de ter mais confiança em Portugal – quando eu disse que queria que ficássemos em primeiro para evitarmos o Brasil.
O que nos leva de volta à ideia de há pouco: eu estava enganada sobre a Seleção.
Esta é uma das minhas coisas favoritas em relação ao Mundial: as conversas sobre isso, não só com pessoas próximas, mas também com estranhos. Pessoas no café, utentes no trabalho. Na terça-feira, por exemplo, depois do jogo com a Suíça, foi quando fui passar a minha cadela e falei com outros donos de cães sobre a piada do Otávio, entre outras coisas. E este Mundial em especial convida a isso, com todas as surpresas.
Espero, então, continuar nesta festa, continuar a humilhar o meu lado mais cético. Alimentem as minhas ilusões, por favor – e nunca mais as quebrem.
Como sempre, obrigada pela vossa visita. Se pudrem, façam um donativo à Amnistia Internacional, que está a tentar ajudar os trabalhadores que construíram este campeonato. Continuem a acompanhar este louco Mundial comigo, quer aqui no blogue, quer na sua página de Facebook.